- Victor Feytor Pinto -  Julho/Agosto de 2019

- Victor Feytor Pinto - Julho/Agosto de 2019

Monsenhor Victor Francisco Xavier Feytor Pinto nasceu em 6 de março de 1932 em Coimbra. Foi ordenado sacerdote em 10 de julho de 1955. Com uma especial predileção pelo trabalho pastoral junto da juventude, acabaria por coordenar em Portugal, durante três décadas, uma área vital da Igreja, a da Pastoral da Saúde. 

É o nosso convidado deste mês.

 

"É fundamental (os médicos católicos) influenciarem a sociedade organizada, os parlamentos, os governos, os sindicatos, para que todos tenham um sentido ético profundo de respeito pela dignidade e liberdade da pessoa. Estes problemas não são religiosos. São humanos".
Mons. Victor Feytor Pinto

 

Em pleno tempo de férias para uma grande maioria de pessoas, aproveitamos a onda e começamos por lhe perguntar, onde costuma e gosta de fazer férias, em algum lugar ou ambiente especial?

Na minha infância e adolescência fui um privilegiado. Os meus pais proporcionavam aos filhos o mês de Agosto na praia de Buarcos e o mês de Setembro nas termas do Luso – Buçaco. Desde que fui ordenado sacerdote as férias foram sempre passadas em actividades pastorais, ou com campos de férias de jovens, ou a pregar nalguma festa das comunidades portuguesas de emigrantes. Nos últimos tempos as minhas férias são passadas em família, na lindíssima vila de Cascais.

Nessa altura também visito alguns amigos, o que constitui o melhor das minhas férias; pomos em dia as contas das nossas vidas, o que é extremamente agradável. As férias de Verão são assim uma oportunidade de descanso em que leio, oiço música, contemplo a natureza e faço oração.


Onde vai buscar essa energia contagiante, que inspira e mobiliza tanta gente há tantos anos? Como consegue fisicamente e animicamente estar bem, mesmo depois de alguns sustos em questões de saúde?

Tenho muita alegria de viver e desde sempre me senti realizado no serviço dos outros. Por isso, a energia de que me fala tem três origens: a minha realização pessoal, ajudar quem de mim precisa e também por uma vontade muito forte, mas sobretudo pelo apoio de Deus na oração. Na minha vida tive muitas situações difíceis com problemas de saúde. As mais importantes foram as operações ao coração e, recentemente, uma septicémia que me deixou na fronteira da vida.

Os médicos foram maravilhosos e Deus foi muito mais. Eu tinha que corresponder aos médicos que de mim cuidaram e Deus foi forçado a ajudar-me pelas orações desta comunidade do Campo Grande. Decidi então, não ficar na poltrona “a ver a banda passar” e, por isso, estou já a exercer a minha vida sacerdotal como colaborador na Paróquia do Campo Grande. Vivo assim uma recuperação física e anímica que me traz a alegria de viver.


Numa entrevista ao jornal “CascaisAlgés”, em 2017, quando celebrou mais um aniversário de ordenação sacerdotal – este mês está de novo de parabéns! -, disse que, para si, enquanto padre, a confissão tinha prioridade absoluta. Pode recordar-nos a importância deste sacramento?

Esta prioridade absoluta precisa de um contexto. Como pároco, da Paróquia do Campo Grande, durante 20 anos, tinha um princípio: quem quer que chega e nos pede para confessar-se é atendido imediatamente. A confissão dessa pessoa tem prioridade absoluta sobre todos os outros trabalhos pastorais.

Receber alguém que nos procura, para confessar-se, é o momento privilegiado para celebrar o Sacramento da Reconciliação. O Papa Francisco diz no nº 44 da Exortação Pastoral Evangelii Gaudium que este sacramento (a Confissão) não é uma câmara de tortura, mas um extraordinário lugar da misericórdia de Deus.

Por isso, ouvir as pessoas que nos contam as suas vidas, na intimidade espiritual mais profunda, e proporcionar-lhes o misericordioso perdão de Deus constitui, para mim, um dom maravilhoso que devo merecer. É que este sacramento da Reconciliação é um encontro de dois pecadores: um deles pede a Deus misericórdia e o outro, ainda que indigno, em nome de Deus perdoa. É extraordinário este mistério de fé.


Ao longo da sua vida foram muitas as missões e funções que desempenhou, mas é mais fortemente reconhecido, se nos focarmos no todo da Igreja em Portugal, pela sua missão e serviço na área da Pastoral da Saúde. Como começou esta sua ligação quais destaca como momentos-chave do seu longo e profícuo trabalho?

Um dia o Senhor Patriarca D. António Ribeiro pediu-me para coordenar em Portugal as capelanias hospitalares. Assim se cumpria um decreto-lei que tinha sido aprovado pelo Estado em 1980. Pareceu-me uma tarefa difícil e, por isso, visitei em vários países os melhores hospitais que tinham organizada a capelania hospitalar. Foi então, que conheci ao tempo Monsenhor Angelini que estava a tentar converter a “pastoral dos doentes” em Pastoral da Saúde. Dentro dessa perspectiva, a Igreja não se preocupava apenas com os doentes, mas com as pessoas que podiam ou não adoecer.

O âmbito do trabalho não era apenas os hospitais, mas também as comunidades cristãs onde era fundamental não só assistir aos enfermos mas também educar para a saúde em todas as idades. Este trabalho foi tão apaixonante que o Papa, S. João Paulo II, em 11 de Fevereiro de 1985 instituiu o Conselho Pontifício para a Pastoral da Saúde. A Conferência Episcopal Portuguesa em Maio seguinte nomeou-me Coordenador Nacional da Pastoral da Saúde. Acompanhei depois reuniões internacionais sobre este tema, sobretudo as Conferências Internacionais do Vaticano. Curiosamente, Monsenhor Angelini, já cardeal, pediu-me para aceitar ser consultor deste Conselho Pontifício. Fui-o durante 16 anos e dei a minha vida, em Portugal, para a Pastoral da Saúde em 31 anos.

É uma história muito bonita, mas que a sua execução plena está apenas a começar. Não estou no entanto preocupado, porque a Igreja nas suas iniciativas sabe esperar. E o que é bom para a salvação global das pessoas irá sempre acontecer mais tarde ou mais cedo. A Pastoral da Saúde tem uma dimensão holística, envolve o espiritual, o social, o físico, o caritativo e, também, o religioso. Constitui um trabalho maravilhoso. 


O Núcleo de Lisboa da Associação dos Médicos Católicos Portugueses conta consigo como diretor espiritual. Os associados estão-lhe agradecidos. Qual o balanço deste serviço pastoral?

A minha nomeação para este serviço de director espiritual dos Médicos Católicos em Lisboa tem também uma história. Por volta de 1986, dois jovens médicos procuraram-me: a Dra. Fátima Rolo e o Dr. Luís D’Orey. Precisavam de um assistente espiritual para renovar a equipa dos Médicos Católicos, presidida pelo Prof. Alperne e pediram ao Senhor Patriarca um sacerdote que os ajudasse. O Sr. D. António Ribeiro indicou o meu nome, por eu trabalhar na Pastoral da Saúde. Têm sido dezenas de anos de um trabalho extraordinário.

As sucessivas direcções desta Associação têm contribuído para a mais profunda reflexão sobre qual a originalidade de um médico que se diz cristão. Em reuniões mensais trabalhamos documentos do Papa aplicando-os à vida profissional de um médico.

A grande síntese surgiu-nos agora, com o discurso do Papa Francisco aos Médicos Católicos do Mundo, na sua consagração ao Sagrado Coração de Jesus. A referência para ser médico cristão, diz o Papa, é imitar Cristo-médico. Seguir a escola de Cristo no cuidar dos enfermos, emprestar-lhes cuidados holísticos, serem profissionais com a maior competência profissional, revestida de uma humanidade evangélica, comparticipar na investigação e nos ensaios de medicamentos e tudo isto, com uma sensibilidade invulgar para promover a vida desde a concepção, até à morte natural.

É tudo isto que constitui o grande tema das nossas reuniões, também revestidas de uma grande espiritualidade. Em 1994, houve um Congresso Mundial dos Médicos Católicos no Porto. Aí, na Assembleia geral o Prof. Walter Oswald foi eleito Presidente da FIAMC. Foi, então, que o Cardeal Angelini me pediu para ser assistente espiritual da Organização dos Médicos Católicos do Mundo. Cumpri esta missão durante 12 anos, com 4 Congressos Mundiais, o último dos quais em Barcelona onde deixei este encargo. Trabalhar com os Médicos Católicos, respeitando o seu extraordinário empenho na sociedade e na Igreja é para mim da maior alegria.


Como vê o contributo desta associação profissional católica, e de outras, para a sociedade e para a Igreja?

Os médicos da Associação dos Médicos Católicos têm extraordinário relevo na sociedade. O problema da saúde é fundamental para toda a população, por isso tem uma dimensão humana, mas tem também uma dimensão política. Os médicos católicos pela sua qualidade profissional têm o papel de grande relevância no curar e no cuidar das pessoas.

Também podem ter uma visão crítica sobre a organização da saúde e sobretudo, têm uma sensibilidade ética no respeito pela vida, pela dignidade e pela liberdade da pessoa. Por isso, se pronunciam sempre que necessário, para garantir mais saúde e melhor saúde para todos. Também na Igreja são a peça fundamental na acção social que as comunidades cristãs implementam para o bem de quantos as procuram.


Em relação aos desafios atuais da ética, em concreto da ética médica, como vê a realidade portuguesa?

Todas as sociedades devem ter um sentido ético profundo. A ética é a ciência dos comportamentos e estes devem ser pautados por valores fundamentais: a verdade, a justiça, a liberdade e o amor, como diria S. João XXIII, na Pacem in Terris. A sociedade humana está hoje cruzada por ideologias que comprometem a visão ética das coisas.

A modernidade com questões fracturantes, em que a vida é descartável, exige grupos que intervenham sempre que necessário para a defesa da pessoa humana e da sua dignidade. Muitas vezes os interesses económicos sobrepõem-se à dignidade da pessoa. Acontece até, que contrariando os Direitos Humanos, se promulgam leis em que os mais fracos são descartáveis. Isto acontece quando se legaliza o aborto ou a eutanásia, quando se desprezam os imigrantes e os refugiados, quando se põe à beira do caminho os pobres e os deficientes. Nestes casos, as vozes dos médicos católicos têm de ouvir-se. É fundamental influenciarem a sociedade organizada, os parlamentos, os governos, os sindicatos, para que todos tenham um sentido ético profundo de respeito pela dignidade e liberdade da pessoa. Estes problemas não são religiosos. São humanos. A Ética não é um problema religioso, é um problema de Direito Universal.

Os Médicos Católicos têm que estar na primeira linha para a garantir. Eu tenho pessoalmente uma enorme sensibilidade para esta intervenção, até porque, várias vezes o Conselho Pontifício me pediu para ser o representante da Santa Sé em reuniões da Organização Mundial da Saúde e nelas senti que a voz da Igreja era muito escutada, embora nem sempre seguida.

Quero saudar a Direcção dos Médicos Católicos que na reflexão Ética está a ter um trabalho brilhante, não só com as reuniões de estudo como até com a publicação de uma obra notável: “Reflexões sobre ética médica” (Princípia Editora, maio de 2019).