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A Entrevista (de)Vida deste mês foi feita, literalmente, em casa, com perguntas e respostas enviadas e recebidas por e-mail e feitas a um membro direção nacional da AMCP, a tesoureira. 

Em tempo de COVID-19 a nossa convidada foi a médica Marta Jonet, de 35 anos, casada há cinco anos e com três filhos pequenos: a Isabel de 4 anos, a Teresa de 2,5 e o António de 9 meses.

Internista no Hospital Amadora Sintra desde 2012, Marta Jonet vive, à semelhança de muitos médicos e outros profissionais de saúde de todo o mundo, um contexto e um tempo profissional e pessoal diferente, feito de novidades, desafios, por vezes de tristeza, mas também de muita esperança e fé, sempre sob o lema "o bem gera o bem".

 

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 "Têm sido dias desafiantes: mas sinto que também nas dificuldades somos chamados a ser instrumento de Deus e, com criatividade, a servir os doentes da melhor forma possível." Marta Jonet

 

Como estamos em início de maio, mês de Maria, e hoje é precisamente o Dia da Mãe (3 de maio), como foi o seu dia?

Em minha casa sempre celebramos o Dia da Mãe a 8 de dezembro, por ser dia de Nossa Senhora. Este dia da Mãe – 1º domingo de maio – foi passado a trabalhar e a descansar. Estive de urgência no sábado à noite e domingo descansei. E passei-o longe da família, pelo distanciamento a que a pandemia me tem obrigado. Mas a verdade é que nunca liguei muito a dias. Penso que é bom haver dias com reconhecimento às mães, pais, irmãos, avós, namorados, mas sou mãe todos os dias e talvez por ter filhos ainda pequenos, não sinto este dia mais importante do que todos os outros.

 

Neste contexto em que vivemos, e encontrando-se a trabalhar na linha da frente na luta contra a pandemia, no Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca / Amadora Sintra como têm sido os seus dias?

A organização horária dos meus dias tem sido parecida com os dias de trabalho habituais, antes da pandemia. Trabalho todos os dias na enfermaria e duas vezes por semana na urgência geral. Do ponto de vista logístico houve muitas mudanças: em primeiro lugar porque houve uma reorganização dos serviços, de forma a poupar os profissionais de risco, pela idade, por doenças ou por gravidez; em segundo lugar pela necessidade de gestão do medo e do desconhecido – estarmos a lidar com um vírus que conhecemos mal, cujo comportamento ainda não está completamente estabelecido e inevitavelmente sabemos, pela experiência do resto do mundo, que estamos expostos a este vírus; e em terceiro lugar devido ao distanciamento propriamente dito – haver um equipamento de proteção individual que nos separa dos nossos doentes; o afastamento das famílias, voluntários e capelão das enfermarias; as consultas feitas por telefone, que se por um lado permitem muita proximidade na relação médico-doente, por outro impedem-nos de avaliar convenientemente o doente. Têm sido dias desafiantes: mas sinto que também nas dificuldades somos chamados a ser instrumento de Deus e, com criatividade, a servir os doentes da melhor forma possível.

 

A relação Família-Trabalho, para muitas profissões mas, no caso, para os médicos, faz-se, pelo que vemos, ainda com mais dificuldades de conciliação. Será também um momento especial para o reforço da solidariedade, diálogo e entreajuda familiar. Como está a ser vivido este momento pela sua família ?

Desde que os casos de infeção por SARS-CoV-2 chegaram a Portugal e com o fecho das escolas que percebemos, em família, que ia ser insustentável manter três crianças com menos de quaro anos fechadas num apartamento estando o meu marido em tele-trabalho e eu a ser requisitada pelo hospital para disponibilidades extra. A solução pareceu-nos óbvia uma vez que a minha sogra vive no campo, numa casa com imenso espaço para correr, brincar, plantar uma horta. Era fácil equilibrar o bem-estar dos miúdos e a necessidade de trabalhar do meu marido. Apesar de ter sido uma decisão fácil, foi muito penosa para mim: todos os dias volto a uma casa vazia, trago as dificuldades do dia, o sofrimento dos doentes - e das famílias, que foram afastadas - e não tenho com quem as partilhar como tinha antigamente. Fazem-me falta as gargalhadas dos meus filhos para encher a casa! A minha família tem estado muito presente, todos os dias me ligam, partilham os seus dias, vão fazendo surpresas (desenhos e etc.), e tem sido muito bom, mas não é igual a tê-los aqui comigo.

 

Como fala sobre esta fase do seu trabalho com as meninas, mais velhinhas? Elas entendem? 

Não aprofundei este tema com os meus filhos. Achei que ia ser difícil explicar e como não perguntaram diretamente, acabei por dizer apenas que estou a trabalhar porque há muitas pessoas que estão doentes e que precisam de ajuda. Estão habituadas a passar fins de semana em casa da avó sem mim, é frequente quando faço bancos ao fim de semana. E sobretudo o que sinto é que eles estão bem, divertidos, com espaço para correr e brincar, rodeados de amor e de afetos do meu marido e da minha sogra.

 

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As novas tecnologias ajudam a matar as saudades?

As novas tecnologias ajudam a disfarçar a saudade. São uma ótima ferramenta, que nos traz proximidade. Tanto as conversas com vídeo como as (muitas) fotografias e vídeos que vou recebendo ao longo do dia. Às vezes as vídeo-chamadas acabam por ser mais disruptivas, sobretudo para o meu filho mais novo: com apenas 9 meses não percebe porque é que me vê e não pode vir para o meu colo. Gravei também algumas canções de embalar que lhes costumo cantar quando os deito, para não sentirem a falta desses pequenos gestos. No entanto, como tudo, se mal usadas, as tecnologias trazem-nos uma falsa sensação de proximidade e de ocupação, sem afeto e sem toque que são características essenciais para as relações humanas. Às vezes dou por mim a pensar que depois deste tempo de maior distanciamento social é premente voltarmos ao essencial, não deixando que este boom de redes sociais e ferramentas de comunicação substituam o amor, base de todas as relações.

 

Enquanto católica, de que forma tem celebrado e dado testemunho da sua fé?

Sempre vi a minha profissão como uma ótima oportunidade para exercer a minha missão em enquanto católica. Este tempo tem tornado ainda mais fácil fazê-lo. Tenho tido várias oportunidades para rezar, fazer companhia, ouvir os doentes, que em situação de fragilidade e sem famílias presentes ficam mais recetivos a desabafos e partilhar com os médicos e enfermeiros. São inúmeros os encontros com Cristo encarnado nestes doentes mais frágeis e se acredito que possa fazer alguma diferença nas suas recuperações, não tenho dúvidas que eles têm feito muita diferença em mim.

 

Também na sua opinião pessoal, parece-lhe que a figura do capelão hospitalar sairá reforçada no pós-COVID, ou o contrário?

Infelizmente com o surto de COVID houve necessidade de proteger os capelães hospitalares, sobretudo os de maior idade ou pertencentes a grupos de risco. Os voluntários, uma vez que não são abrangidos por seguro profissional, foram também afastados dos hospitais. Nesta fase, os doentes internados, nomeadamente no Hospital onde trabalho, tem pouco apoio espiritual, apenas aquele que recebem dos profissionais de saúde: médicos, enfermeiros e assistentes operacionais. Sabemos que é essencial o encontro e equilíbrio espiritual para a convalescença dos doentes.

Assim, temos conversado, enquanto Direção da AMCP, sobre a necessidade de avivar a figura de capelão hospitalar, no sentido de facilitar e aproximar Cristo dos doentes. Penso que teremos uma janela de oportunidade muito boa para o fazer!

 
Nos momentos difíceis que se vivem no hospital, como se consegue ultrapassar a dor, a dos outros e do próprio profissional de saúde, a sua? No outro dia comentava que era necessário fazer renascer a esperança nas pessoas...

Após uma a duas semanas de pandemia senti que a comunicação social nos inundava de más noticias COVID, quando na verdade o mundo precisava era de COVID no positivo, noticias e partilhas de esperança e alento nesta fase de maior incerteza. Os portugueses são, historicamente, um povo muito unido e solidário e em casa sempre ouvi dizer que o bem gera o bem. Posso dar alguns exemplos: logo no início recebi uma chamada em que me perguntavam o que se podia fazer por nós, médicos católicos, para nos ajudar na nossa missão durante a pandemia. Quando contei que o nosso capelão havia sido afastado do hospital, rapidamente surgiu a ideia de fazer pagelas com uma oração para entregar aos doentes. Em menos de nada recebi várias pagelas e foram já vários os doentes com quem rezei. Também já perdi a conta da quantidade de e-mails de doentes que querem saber se está tudo bem, se tenho fruta e legumes em casa ou se preciso que me tragam, e também inúmeras doações de EPIs, viseiras, produtos de higiene. Gerou-se uma impressionante cadeia de preocupação e solidariedade com os outros.

A dor do doente é a mais difíicil de ultrapassar. O afastamento das famílias provoca ainda maior desorientação aos doentes, muitas vezes já em situação de fragilidade. Enquanto profissional de saúde tem-me ajudado partilhar com pares (médicos e enfermeiros), que estão a passar pela mesma situação. A partilha é muito reconfortante.

 

Quando este tempo de pandemia terminar, qual será a primeira coisa que pretende fazer?

Penso que este tempo de pandemia veio mostrar ao mundo que os homens estavam preocupados demais consigo próprios, em vez de sairmos de nós e olharmos à nossa volta: para o outro, para a natureza, para os afetos, para a presença de Deus nas nossas vidas e nas coisas mais pequenas. Este vírus fechou-nos em casa e deu-nos uma oportunidade de parar e definir em que sentido é que queremos empenhar as nossas forças daqui para a frente. O que  estou a fazer, já, mesmo antes de este tempo terminar, é aproveitar cada minuto para melhorar, de alguma forma, a vida das pessoas que me rodeiam.

 

É associada da AMCP desde final 2018, faz parte da Direção Nacional, com o cargo de tesoureira. Como conheceu a AMCP e porque decidiu associar-se?

Ouvi falar pela primeira vez da Associação em 2010, durante o estágio de Cuidados de Saúde Primários que realizei em Vila Verde de Ficalho, sob orientação do Dr. Edmundo Sá, atual Presidente do Núcleo de Beja. Lembro-me que na altura considerei muito interessante e pertinente a existência de uma associação de médicos católicos. Voltei a ter contacto mais recentemente quando fui convidada para integrar a Direcção, com o cargo de Tesoureira. Depois de investigar a missão, os valores e ações da Associação e uma vez que considerei interessante poder servir também desta forma, abracei o convite!

 

E como está a ser esta experiência de trabalho ao serviço da AMCP?

A Associação dos Médicos Católicos Portugueses tem desenvolvido um trabalho notável nos últimos anos, de maior visibilidade na sociedade, tentando defender uma posição em relação a assuntos fraturantes. Mantem a revista médica, o voluntariado em Fátima e as atividades desenvolvidas por cada núcleo regional. É uma graça enorme poder trabalhar com esta equipa tão empenhada! Tem sido uma experiencia gratificante estar envolvida neste projeto que apoio e que acredito ser dirigido a um bem maior.