"Pior a emenda que o soneto"

Por Walter Osswald

A propósito da legalização da eutanásia em Portugal

 

Perdoar-se-á que recorra a esta frase popular para encabeçar uma breve nota sobre a aprovação, pela Assembleia da República, de um “novo” ou melhor, emendado texto de proposta de lei para a legalização da eutanásia. Foi afirmado, pelos partidos proponentes dos textos quasi sobreponíveis, que estas versões satisfaziam plenamente as críticas que o Presidente da República endereçou aos proponentes, explanando assim, com sua habitual clareza e elegância, o veto que proferiu. Recordemos que o Presidente considerou insuficientemente definidos conceitos básicos invocados pelos proponentes, apontando ainda contradições internas e falta de rigor de afirmações exaradas no texto.

 

E o que fez a AR? Aproveitou a ocasião para reformular o texto, corrigir os erros e desvios que o mancham, reflectir e repensar, escutar e discutir os pareceres (negativos) entretanto formulados pelas Ordens do sector, consultar, como é de lei, o Conselho Nacional para as Ciências da Vida? Não, de modo nenhum; preferiu alterar minimamente uma frase, substituindo um “e” por um “ou”, alteração essa que torna ainda mais radical um projecto de lei que já era, na versão anterior, mais “progressista” do que a legislação belga e holandesa, sempre tomadas como exemplo pelos defensores da eutanásia.

 

Mantém-se o eufemismo erróneo de designar a eutanásia como “morte medicamente assistida” e a inacreditável afirmação de que o objectivo da lei proposta é descriminalizar “a antecipação da morte medicamente assistida”. Ou seja, a definição do objecto do texto está errada, uma vez que o que se pretende legalizar não é a antecipação da eutanásia, mas sim a prática da eutanásia.

 

Pelos vistos incapazes de formularem com exactidão o objecto do texto, os parlamentares proponentes manifestam-se também não aptos a definirem com clareza conceitos como sofrimento extremo, doença fatal ou lesão grave e incurável. Mais, ao colocarem um simples ou antes de lesão grave alargam de forma brutal o campo de aplicação da lei. Na realidade, se anteriormente a eutanásia era considerada admissível em casos de doença incurável e fatal, o texto presente deixa de exigir a existência de doença incurável com a característica de fatal. Ou seja, o universo dos eventuais candidatos alarga-se desmesuradamente, pois nele são agora incluídos doentes como os diabéticos, os insuficientes cardíacos, até os hipertensos (todas estas entidades patológicas são tratáveis e controláveis, mas não curáveis, como é do conhecimento médico básico). E a cegueira ou a paraplegia passam também a justificar a eutanásia, pois são, indiscutivelmente, lesões graves.

 

Tem-se afirmado, com razão, que o argumento fundamental invocado para justificação da eutanásia, o da autonomia do sujeito, é usado aqui de forma distorcida e hiperbólica: de facto, a autonomia é um princípio ético relevante, mas deve ser enquadrado com outros princípios igualmente importantes, tais como a justiça, a beneficência, a não maleficência e a solidariedade. Não reconhecer os limites da autonomia, absolutizando-a, é desconhecer o seu carácter relacional, contingente e graduável. A qualidade moral da decisão individual está sujeita, nas sociedades democráticas, a escrutínio social e legal, podendo ser considerada positiva ou negativa, boa ou má.

 

De resto, as propostas de lei são também neste aspecto inquinadas de contradição. Se a autonomia se sobrepõe a todos os outros princípios, não é defensável impor-lhe condicionantes e limitações: a lógica exige que a eutanásia deveria estar ao alcance de qualquer pessoa maior de idade e na plena posse das suas capacidades psíquicas. Ora, nas propostas de lei a decisão de proceder ou não à eutanásia é atribuída a terceiros (médico orientador, em conjunto com outro médico especialista e eventualmente com intervenção de psiquiatra; e ainda de uma comissão que proferirá a decisão final). Por outras palavras, a autonomia do doente é cerceada pelo facto de a sua decisão ter de ser aprovada por terceiros, com predomínio de médicos. Não sendo jurista, não comento a constitucionalidade das propostas. Mas entendo, como certamente qualquer leigo, que a leitura da CRP tem de ser feita com malabarismos jurídicos e invocando pouco consistentes entendimentos do que é a vida e qual o significado da clara a simples asserção constitucional de que a vida é inviolável, para admitir que a legalização da eutanásia é compatível com o respeito pela CRP.

 

Para terminar: se tivermos presente a afirmação de que os seus frutos nos permitem avaliar da bondade de disposições legais, então o que se passa na Bélgica, Holanda (e Luxemburgo) não nos deixa dúvida sobre as graves consequências da eventual descriminalização da eutanásia, com a inevitável rampa escorregadia que conduziu, nesses únicos 3 países da Europa que autorizaram a eutanásia, a divisão social, conflito entre profissionais, alargamento sucessivo do âmbito de aplicação da lei e, sobretudo a um número elevado (calculado em 500 por ano, só na Holanda) de eutanásias involuntárias, ilegais mas impunes, que consignaram verdadeiros homicídios.

 

Walter Osswald

Junho de 2022