- Paulo Otero - Fevereiro de 2020
Desta vez trouxemos um jurista para a nossa conversa mensal, o professor doutor Paulo Otero. Convidámo-lo no seguimento do debate promovido pela Ordem dos Médicos (OM), na sede da OM, em Lisboa, iniciativa realizada antes da discussão parlamentar dos projetos de lei para a despenalização da eutanásia e ocasião em que apresentou o seu mais recente trabalho editorial, nem de propósito, "Eutanásia, Constituição e Deontologia Médica", da AAFDL Editora.
Do vasto percurso profissional do doutor Paulo Otero permitimo-nos destacar que é catedrático de Direito, professor decano de Direito Público da Universidade de Lisboa; Jurisconsulto de entidades públicas e privadas e ex-Presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Leitura dos resultados que ditaram a despenalização da eutanásia em Portugal : "Desilusão" (Paulo Otero)
Qual a sua leitura global dos resultados parlamentares que ditaram a despenalização da Eutanásia em Portugal?
Uma única palavra descreve tudo: desilusão. E desilusão, em várias vertentes:
- desilusão, em primeiro lugar, pelo desprezo que os deputados têm pela vida humana e pela sua inviolabilidade garantida pela Constituição;
- desilusão, em segundo lugar, pelo desprezo que os deputados revelam sobre o sentido e os fins do exercício da atividade médica e o próprio conceito de ato médico;
- desilusão, em terceiro lugar, pelo desprezo que os deputados têm pela autonomia das associações públicas, em especial, no caso, pela Ordem dos Médicos;
- desilusão, em quarto lugar, pela lista de prioridades legislativas no contexto global das necessidades da coletividade.
A conjuntura política atual do país apontava para estes resultados. Ainda assim, algo o surpreendeu no debate ou na votação?
Surpreendeu-me a celeridade de todo o processo legislativo, sem debate amplo, sem interesse em que esse debate se fizesse. Surpreendeu-me ainda a forma leviana como se desconsideraram os pareceres éticos, todos eles contrários à eutanásia ou, pelo menos, aos termos como foi aprovada na generalidade pelo parlamento.
A AMCP apelou ao veto do Presidente da República. O que lhe parece que fará o Senhor Presidente, ou o que é que a seu ver ele deveria/poderia fazer?
Um Presidente da República, no ano anterior ao processo eleitoral de uma provável recandidatura, pode fazer tudo, sem se poder esperar que faça alguma coisa O exemplo do Presidente Cavaco Silva, face ao casamento de pessoas do mesmo sexo, mostra-se elucidativo. O que pode o Presidente da República fazer?
Penso que, tal como já adiantei à Radio Renascença, tem três hipóteses:
- Pode pedir ao Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade, que a lei é inconstitucional;
- Se o Tribunal Constitucional considerar que a lei não é inconstitucional, pode exercer direito de veto político, devolvendo o diploma à Assembleia da República;
- Se a Assembleia da República confirmar o diploma, por maioria absoluta, entendo que o Presidente da República pode, legitimamente, exercendo o seu direito fundamental à objeção de consciência, recusar promulgar o diploma.
Em 2018 a Igreja Católica defendeu que a vida não é referendável. Viu-se agora na contingência de propor e apelar o referendo popular. Parece-lhe a estratégia certa? Que dificuldades e mais-valias antevê no processo?
Penso que a vida humana não se referenda e, por isso, a matéria da eutanásia não deve ser objeto de referendo. Além disso, uma lei aprovada na sequência de um referendo, depois só por outro referendo poderá ser revogada, cristalizando ou petrificando-se a sua existência no ordenamento jurídico. Em sentido contrário, se não existir qualquer referendo, a lei hoje aprovada, pode, amanhã, por uma maioria política diferente, ser revogada.
Em toda a reflexão e debates que anteciparam a subida a Parlamento dois tópicos eram sempre apresentados em confronto: a liberdade individual e a inviolabilidade da vida humana. Tem de ser assim?
Não há liberdade, nem pode haver liberdade, sem vida: a inviolabilidade da vida humana é a primeira garantia de todas as restantes garantias, tal como a vida humana é o primeiro direito de todos os restantes direitos. A liberdade individual é um valor constitucional subordinado à vida humana: eu não tenho liberdade para dispor da minha liberdade (v.g., não posso, num ato de liberdade, tornar-me escravo de alguém), tal como não tenho liberdade para dispor da minha vida, exigindo ao Estado que crie meios ou permita que um terceiro disponha da minha vida. O suicídio não é um ato de liberdade ou um direito: o suicídio é sempre uma conduta ilícita (sem sanção, hoje), razão pela qual o incitamento ao suicídio é crime, ou, no limite, ao suicídio será uma mera liberdade de facto, sem tutela garantística.
Com esta decisão parlamentar pode dizer-se que a vida humana perde valor, ou melhor, passa a haver vidas com mais outras com menos valor?
Com a aprovação, além de se dar mais um passo na designada “cultura de morte”, observa-se o descartar da vida humana: entende-se que a vida humana em doença e sofrimento (e, note-se, à luz dos projetos aprovados, apenas se o sofrimento for físico…) é menos digna e, por isso, sendo permitida aqui a eutanásia, deixa de estar coberta pela garantia constitucional da inviolabilidade.
Tem receio de uma mercantilização da morte?
Naturalmente que tudo isto pode conduzir à mercantilização, assistindo-se ao florescimento de clínica privadas especializadas em proporcionar uma morte rápida e de luxo: numa economia de mercado, dominada por uma lógia capitalista, a eutanásia dará origem a uma pluralidade de “negócios de morte”.
Sobre o Código Deontológico dos Médicos, como ficamos? Terá de ser alterado? Por quem? Há um desajuste entre o Código e a Lei?
O Código Deontológico dos Médicos não pode ser modificado por uma lei do Estado: há aqui, por força da Constituição, uma reserva de normação deontológica a favor da Ordem dos Médicos (enquanto associação pública), objeto também de intervenção normativa internacional, por via da Associação Médica Mundial, gerando pautas normativas integrantes de novo Direito Profissional Transnacional que se impõe aos Estados.
No limite, pode ocorrer um desajuste entre a lei (inconstitucional) do Estado, permitindo a eutanásia que, sendo praticada por um médico, não gerará responsabilidade criminal, mas, uma vez que o Código Deontológico se mantém sem alteração, o médico em causa pode (e deve) ser objeto de procedimento e sanção disciplinar.
E quanto ao Juramento de Hipócrates, este juramento solene também é colocado em causa?
Naturalmente que sim: a Assembleia da República pretende fazer prevalecer a sua vontade político-legislativa sobre a vontade ética imemorial dos médicos, adotando uma conduta compatível com qualquer Estado totalitário em que tudo se resume à prevalência absoluta da sua vontade, ao esmagamento das autonomias institucionais e ao desprezo pelos direitos fundamentais das pessoas.